sexta-feira, 1 de julho de 2011

Edição nº63



Crónica
Devagar que estou com pressa
A história de uma viagem para ler sem pressa


Sol. Chuva. Sol. Chuva. Sol. E mais uma volta à ilha. Velocidade média: 27,5 km/h, alternada entre 15 km/h, em subidas, e 40 km/h, em descidas. Tempo de viagem: duas horas e meia, mas poderia ter sido um pouco menos, não fosse aquele tractor que calmamente desfilou, à nossa frente, durante um terço do caminho. Meio de transporte: veículo apelidado de “Meireles”, com grave problema de ejecção e totalmente abstraído de conceitos como “aceleração” e/ou “velocidade”. Viajantes: três jovens raparigas, para quem, o facto de habitarem num planeta redondo, com vulcões, não passava de uma lembrança remota.

No meio do Atlântico, há um lugar.

Um lugar que, para alguns é a casa, para outros um porto de paragem e para outros, ainda, um parêntesis na sua vida. Esse lugar está coberto por um pano verde, malhado às vacas, pontilhado por hortênsias e rematado de areias pretas que, de tão negras, iluminam o ciano do mar. Nesse mesmo lugar, há vulcões. Vulcões vivos. Sim, porque os geólogos disseram- -nos que os vulcões não morrem, só adormecem, e que o seu cume pode abater abrindo uma caldeira como esta, no cimo do pano — uma provocadora de cartasses, um elogio à natureza e, ao que chamamos, de forma tão abstracta, paisagem. No alto dessa caldeira, há uma linha. Um limbo percorrível que separa esse elogio de todo o resto.

Nesse todo o resto, a interromperem um horizonte não horizontal mas sim curvo como o mundo, vêem-se estendidas outras ilhas que são outros lugares com outras vidas, outras vacas e outros vulcões. Num desses vulcões cresceu, no seu topo, um piquinho. Um dia, esse piquinho passou a ser o nosso o objectivo. Subimos, então. Subimos. Subimos. Até que, num momento, parámos. Olhámos para trás. E, de um amigo coberto de branco, escutámos: “olhem a ilha de bruma”. De facto, lá estava ela, à nossa frente, esparramada em forma de tartaruga, protegida por uma carapaça de nuvens densas, compactas... E o sol se pôs atrás da tartaruga. Veio a noite. O vento e o frio.

A mãe natureza no seu estado puro, duro e líquido. Fingimos que dormimos. Acordámos. Na madrugada, o sol surgiu por cima das nuvens. Abaixo de nós, um manto branco intransponível a olho nu. E ali estávamos nós, a cumprir as fantasias de uma infância onde sonhávamos andar sobre as nuvens. Mas, nas nuvens não se anda, quanto muito atravessa-se; e uma inocente imagem não é a natureza. E lá está: o frio queima, a humidade molha e o vento dói. A natureza dilacera-nos e nós nos sentimos vivos. Vivos, vamos à procura de outras ilhas, à procura de outros lugares, de outras pessoas. Em frente, do outro lado do canal, uma espinha dorsal, emergida do mar, transforma-se num novo objectivo. Fez-se planos mas, no erro do plano, a surpresa aconteceu. Então, entre o cinzento do céu e verde da terra, aprendemos sobre os vulcões, os sismos e os tsunamis. De repente, o tempo imensurável torna-se curto e temos de voltar à ilha de bruma.

Entre as ondas, a feliz coincidência: o reencontro entre pessoas. Desse reencontro, um convite. Desse convite, um jantar. E, no fim, num extasiante curto espaço de tempo, lá estávamos todos nós sentados à mesa de uma casa, neste lugar, no meio do Atlântico.

Sara Orsi





Colaboradores:


Capa: Aurora Ribeiro, Jácome Armas, Tomás Silva
Arquitectura e Artes Plásticas: OMA
Literatura: Miguel Machete
Ciência: Sílvia Lino e PNF
Gatafunhos: Tomás Silva


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