sábado, 26 de novembro de 2011

Edição nº69



Crónica
Ilhas à Venda

Chamo-me Mário Jaleco. Em tempos já fui professor de Filosofia. Depois veio o desemprego e fui fazendo outras coisas, muitas coisas; algumas para me safar, outras por convicção. Presentemente, trabalho num Jardim e nas ruas limítrofes onde faço limpezas. A enxada, as vassouras, as luvas e os sacos de lixo, são as minhas ferramentas de trabalho. Aproveitei esta oportunidade em troca da suspensão do Rendimento Social de Inserção. Agradou-me o facto de trabalhar na rua e não em frente a uma máquina, num espaço fechado. Embora o trabalho, por vezes, seja um pouco duro e pesado, apetecia-me estar próximo de seres vivos, no seu habitat natural. E perto do Sol. E da chuva. E dos ritmos livres da Natureza, na sua expressão bruta. Tenho isso, para mim, como um privilégio. Estive, pois, desempregado vários anos... mas a trabalhar. Porque era um desempregado e um Voluntário. E também um desempregado voluntário. Assim mesmo, sem reticências nem vírgulas! Isto porque tinha escolhido ter mais tempo para... ter Tempo, precisamente. Aborrecia- -me ser dependente de trabalhos que não me realizavam só porque precisava de um salário que ainda por cima, se comparado com outros, era injusto e discriminatório. Aliás, é por essas e por outras que às vezes o dinheiro me chateia. Porque preciso dele – azar! – mas principalmente porque ele se sobrepõe cada vez mais às Pessoas, ao valor Humano e àquilo de que realmente precisamos, ou seja, de Nós mesmos e de nos recuperarmos. O dinheiro já não é algo que possuímos e a que atribuímos um valor; ao invés, agora é ele que nos possui e nos atribui um valor. Somos um Produto Interno dele e, pior ainda, um produto Bruto, que nos roubou de nós mesmos e nos trocou por outros valores, mais especulativos e irreais, mais absurdos e desumanos. E começámos a morrer. Porque somos humanos, lá está. Isto já começou a afectar-nos a Todos. Porque somos células de um mesmo e Imenso Organismo Vivo, o Planeta-Terra, que assim se desagrega e desmembra por ir contra a sua Natureza, vítima de uma infecção oportunista grave: o Ego-ísmo e a sede do lucro. Esse é o vírus que ataca a nossa verdadeira Essência – a realização e o exercício da Paz Interior, uns-com-os-outros, na Natureza que simultaneamente somos. Por isso o meu sonho é viver (mais) sem o dinheiro. Mais com menos, porque Menos é Mais. Como fazê-lo? Comprando menos (com) dinheiro e trocando mais serviços, potencialidades e capacidades. Afinal, todos Nós temos alguma coisa que o Outro precisa, não é verdade? E não se pense que isto é uma mera utopia ou uma ilusão tola e ingénua. Já se faz e há quem o pratique em pequenas comunidades, de serviços ou mesmo geográficas (Banco do Tempo, Feiras de Trocas, Eco-Aldeias, etc). Importa agora que essas experiências deixem de ser “ilhas”, convidando o resto do Mundo a pensar-Se assim, como Um Todo capaz de valorizar e realizar os Indivíduos na sua especificidade íntima, mas também enquanto seres iguais e interdependentes. É preciso passar da Globalização estandardizada, para algo mais Glocal e capaz de integrar as enormes minorias de que Todos somos feitos. A Unidade da e Diversidade. Seria mais saudável. Seria mais sensato. É um caminho a fazer-se. Aliás, foi por isso e para isso, porque quis acreditar poder concorrer para uma tal realidade, mais próxima, mais “pequena”, feita de e por indivíduos mais “chegados” e solidários, que cometi na altura a “loucura” de me excluir do mercado de trabalho. Queria viver e aprender a viver com menos dinheiro. Mais devagar. Mais Pequeno. Mais perto. Fui então espreitar. Aprender um outro Olhar. E (vi)ver como se fazia do lado “deles”, os “mais excluídos”, os mais “pequenos”. Comecei cá, em Portugal, e entretanto “dei o salto” para os ditos países sub- desenvolvidos. Vivi por lá uns tempos. Emprestaram-me casa e comida e eu paguei com o meu trabalho. A tal troca. Tá-se bem! Desta forma, voluntário a tempo inteiro, resolvi a questão do salário injusto, já que assim, embora não fosse bem pago, a verdade é que também não era mal pago – não era pago, simplesmente. Assunto resolvido, pois. Curiosamente, esta até me pareceu “a paga” mais justa e digna que alguma vez recebi. E a verdade é que, pouco a pouco, fui descobrindo não ser assim tão difícil viver com bastante menos do que estava habituado. Apenas é preciso fazer uns reajustamentos: despojarmo-nos de algumas coisas, redefinir prioridades, encontrar alternativas, mudar o cenário. Uma vez conheci uma pessoa que me disse o seguinte: “Escolhi viver com pouco dinheiro”. Afinal de contas, pode até ser uma opção de Vida (para os que têm a opção, sublinhe-se!) Nesses países vi(vi) coisas bonitas. Outras mais feias. Mas por isso mais completas. Aliás, essa coisa de nos fascinarmos por um País, um Povo ou uma Cultura (ou mesmo uma Pessoa), e ficarmos por aí, não é bem o que procuro e não me chega (às vezes não basta viajar, é preciso Ficar). Acho que só quando nos desiludimos e conseguimos ver para além disso, ver as contrariedades e os “defeitos” (note-se que a palavra partida em dois e lida ao contrário, fica “feitos de”), só nessa altura começamos a conheSer verdadeiramente. Depois só é preciso seguir em frente e escolher o lado que queremos valorizar e/ ou o que gostaríamos de mudar. Não foi fácil, é certo. E ainda não é. Quando nos expomos assim, a algo novo e diferente do que fomos sendo educados a pensar, falham-nos o chão e as referências a que sempre estivemos habituados. Mas, apesar de sentirmos o medo e o fascínio perante o Outro, “o estrangeiro”; apesar de sentirmos ainda o nosso próprio medo, de não compreendermos ou sermos compreendidos, percebemos que essa era, também, a possibilidade de aprendermos algo mais sobre Ele, sobre Nós Mesmos e sobre a Nossa Diferença. Na verdade, essa possibilidade era uma dádiva, uma oportunidade para partilharmos os nossos mundos e assim, dessa forma bonita, crescermos juntos (n)o Mundo. Por isso escolhemos ficar e confessar ao Outro que também Nós tínhamos medo. Aí foi quando por fim percebemos, que as nossas diferenças eram afinal iguais. E com isso aprendemos também o Respeito. Porque aprendemos, com gestos simples e verdadeiros, com “os sorrisos absolutos das crianças”, que não há nada tão valioso como sermos nós próprios no estado mais puro, que o que damos é o que somos. E que somos todos outros-uns- dos--outros. Mais uma vez, insisto: isso é o que faz de Nós-Um-Todo, uno e múltiplo, simultaneamente. Era pois importante percebermos, de uma vez por todas, que é na riqueza da nossa diversidade que reside a nossa Força. E que é precisamente nisso que somos todos iguais: ninguém escapa a ser diferente – está no nosso ADN. Considero-me, pois, um privilegiado por ter vivido (n)estas realidades tão diferentes. Poder escolher isso foi “um luxo”. Mas foi a minha escolha. E uma boa Escol(h)a. Porque aprendi e enriqueci imenso. E porque essa é a Riqueza que verdadeiramente interessa. Esse é o Valor Acrescentado. O meu Produto Interno Bruto. Hoje, é também disso que sou feito. Do que me ficou por dentro, no meu avesso. Esse património de afectos, paisagens- -retina, retidas no que a minha Memória fotografou. As Pessoas-Povo, as suas vidas e os rostos dessas vidas a Olhar para a Vida. Os seus simples e profundos Olhares. E, no fim, o meu olhar a olhar para Elas. Agora, neste papel, estou aqui a ver-me a olhar. Para mim? Para o Outro? Para Nós...porque somos o (auto-)Retrato do Outro.

Mário Jaleco


Colaboradores:
Capa: "Código Morse" de Laura Marques
Literatura: António Bulcão, Ulrike Alemoa
Cinema: Maria Leite
Intervenção: Cristina Lourido
Música: Victor Rui Dores, Luís Henriques
Ciência e Ambiente: Hugo Parra, Nuno Rodrigues - PNF



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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Edição nº68



Crónica
Ilhas à Venda

Em Março do ano passado, apareceu a notícia “Ilhas gregas são vendidas para fazer frente à crise que o país enfrenta”. Não se tratava das ilhas turísticas que todos bem conhecemos, aquelas que fazem parte do circuito habitual dos iatistas nos Mares Egeu e Jónico; nem tão pouco de ilhas habitadas. Tendo em conta que a Grécia possui mais de seis mil ilhas, e que apenas pouco mais de duzentas têm habitantes, o país bem podia vender algumas das desabitadas a excêntricos milionários. Afinal, quem, tendo dinheiro para tal, não gosta da realidade fílmica de possuir uma ilha no Mediterrâneo? No entanto, muito em breve se colocou outra questão. Porque não vender ou talvez alugar por um prazo longo algumas das ilhas mais turísticas (e habitadas)? Aí, já se começou a falar de ilhas tão conhecidas como Mykonos e Rhodes. Falou-se até da venda de parte dessas mesmas ilhas. Ninguém explicou muito bem como se faria a divisão: metade da ilha pertencia ao Governo Papandreou e a outra metade ficava na posse de um privado? Onde se traçava a linha imaginária que ia dividir a ilha a meio? Que direitos tem o privado face às casas e aos habitantes que moram na sua parte da ilha? Quem lá se desloca está, automaticamente, a trespassar terreno de outrem? E se o privado não fosse da União Europeia, os gregos que morassem na parte grega da ilha teriam de se munir de passaporte sempre que quisessem ir a esse terreno visitar a família que lá morava? Confuso... Os factos, porém, eram os seguintes: os dirigentes alemães – qui d’autre?... – aconselharam a medida de venda de ilhas ao Governo grego para fazer face ao défice público. Claro que tal conselho surgiu na sequência da ajuda da União Europeia e do empréstimo do FMI à Grécia. Os gregos “ganharam” 110 mil milhões de euros emprestados com juros e, com eles, uns quantos “conselhos” sobre como os pagar rapidamente. O Financial Times e o The Guardian especularam amplamente sobre o quanto podia render uma ilha grega ao Governo grego. Qualquer coisa como 2 a 15 milhões de euros. Nada de se desprezar. Investidores chineses e russos e milionários conhecidos como Abramovich manifestaram imediato interesse na compra dos paradisíacos bocados de terra e tinham planos para magníficos investimentos nos locais. Foi possível entrar em portais da net e “ver” certas ilhas à venda. Como exemplo, Nafsika, uma ilha do mar Jónico, estava em leilão por 15 milhões. Mas nem todas estavam tão bem posicionadas. Algumas ilhas vendiam-se por cerca de 2 milhões, ou seja, menos do que uma casa em certos bairros de Londres. Makis Perdikaris, director de uma empresa chamada Greek Island Properties, afirmou estar duplamente entristecido por “vender terreno do seu país e do povo grego” e ainda por ver que este era “o último recurso” da Grécia. Analistas internacionais acharam o caso “uma vergonha”; outros, com a mesma leveza, declararam que esta acção “prova[va] que a Grécia esta[va] a levar a sério o pagamento da sua dívida externa.” Entretanto, vieram desmentidos a público a par de re-afirmações da notícia e, apesar de eu ter muitos amigos gregos que vivem nos mais diversos locais da Grécia, nunca fui capaz de apurar ao certo se o Governo tinha vendido as ditas parcelas de ilhas ou não. E isto porque os gregos, actualmente, são os últimos a saber o que lhes acontece. Eu mesma já cheguei a informá-los de coisas que vi na televisão e que eles ainda não sabiam. Há uma espécie de sonegar de informação, suponho que – como eles me disseram – “para manter o povo sossegado e evitar uma revolução”. Como todos sabemos, as últimas notícias reportaram que a Alemanha está disposta a perdoar à Grécia metade da dívida desta. Ora, todo o perdão tem pouco de magnanimidade e muito de troca, como bem nos tem ensinado ao longo da História a Santa Madre Igreja. Pessoalmente, estou em crer que o perdão alemão está de olho no enorme exército da Grécia. À conta de muita guerra no curso dos tempos com os seus vizinhos turcos – para além de uma enorme complexidade com os macedónios e os cipriotas – e da sua posição geográfica mais ou menos frágil, a Grécia não abdica de um exército fenomenal. Para além de ter serviço militar obrigatório durante 9 meses (sem qualquer excepção para estudos) para todos os rapazes e serviço militar voluntário para as raparigas, a Grécia ainda hoje é o maior importador de armas da Europa e gasta muito do seu PIB em armamento. Curiosamente, segundo aqueles labirintos políticos do costume, os países europeus que cobram a dívida à Grécia (e.g. França e Alemanha) são os mesmos que lhe vendem armas... Mas claro que é bastante mais simpático receber o dinheiro do armamento, perdoar uma dívida e ainda ficar com o maior exército vivo da Europa a lutar por nós e sob o nosso comando, quando e se a gente quiser... Estou a contar uma pequena parte desta historieta porque agora com as medidas da Troika me ocorreu que Portugal não tem, nem de perto nem de longe, um exército que interesse à Sra Merkel. Que moeda de troca lhe havemos de dar? O Algarve seria uma boa ideia, mas os ingleses já o foram comprando devagarinho e o que resta não dá nem para saldar uma dívida de mercearia. E se fossem as ilhas, como primeiro ocorreu ao cérebro Papandreou? Ah, mas felizmente, nós, ilhas dos Açores, temos uma sorte estupenda. Primeiro, porque turisticamente somos quase desconhecidos. As pobres das ilhas gregas, não lhes bastava terem um clima espectacular como ainda estão no berço da Civilização Ocidental e atreveram-se a fazer do turismo a sua primeira fonte de recursos, tendo quem as visite por razões históricas e quem as visite por razões de sol e mar. Já os Açores, abençoados por Deus com um capacete de brumas quase todo o ano, e historicamente muito pouco relevantes no contexto mundial (vá... convenhamos!), não podem ter tais pretensões. Há mapas-mundo que nem contemplam a representação dos Açores. Temos muitíssima sorte! A Grécia recebe uma média de 18 milhões de turistas por ano e a esmagadora maioria destes vai visitar as ilhas. Os que de entre vós conhecem as ilhas gregas saberão que, se não fossem os turistas, elas não teriam muito mais de onde retirar lucro, para além de ovelhas, azeitonas e laranjas. Dizem-me que os Açores têm cerca de 160 000 turistas por ano - não encontrei estatísticas e acho um número inflacionado, mas ainda bem que não são mais! Ovelhas não temos, mas não esqueçamos que as nossas vacas parecem bastante felizes, segundo foi apreciado pelo próprio Presidente da República. Mas angustia-me o facto de, contrariamente à Grécia, possuirmos tanta boa infra-estrutura a todos os níveis: hotéis, marinas, estradas, restaurantes. Nas ilhas gregas, isto é tudo caseiro e rural. Só para dar um exemplo, em toda a Grécia, só há 50 marinas... Quem quiser amarrar barcos, amarra em bóias e salta para terra (o que nunca impediu ninguém de lá ir anualmente, inclusive eu mesma que por lá andei a navegar). Porque é que estou angustiada com isto? Porque imaginem se, por um infeliz acaso, um dirigente alemão – não esqueçamos que estes povos do Norte acham que Açores é “tropical” – tem a infeliz ideia de saber da nossa existência e sugerir a nossa venda ou aluguer ao Governo português? A minha grande esperança é que, dado que ninguém nos dá qualquer importância, se esqueçam que cá estamos. Caso contrário, imagino já o leilão na internet do Corvo, de Santa Maria, da costa norte de São Miguel... Felizmente, nós não valemos tanto que alguém nos queira comprar; aliás, nós damos muita despesa... Recordo um célebre estudo, defendido publicamente, da Universidade dos Açores que reflecte o assustador gasto que é manter cada ilhota açoriana cheia de povinho. Portanto, graças a Deus, ninguém nos há-de querer. Mas, pelo sim, pelo não, o melhor é não fazermos muito barulho. A não ser que queiramos aparecer no E-Bay com uma etiqueta: “Vende-se ou aluga- -se. Usado mas em estado razoável. Terreno produtivo. Clima húmido, nevoento, chuvoso, deprimente. Povo tranquilo e conservador, habituado a obedecer sem custo. Vacas felizes.”

Carla Cook


Colaboradores:
Capa: "Os meus dias em algumas horas" de Inês Ribeiro
Literatura: Aida Baptista, Catarina Azevedo
Música: Victor Rui Dores, RAS
Diferenças: Mano
Ciência e Ambiente: Nuno Rodrigues



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