segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Edição nº67


Crónica
A Imundar por aí fora

Engana-se quem pensar que a digressão do Imundação durou apenas dez dias. Foram longos os meses de trabalho forçado e de exploração infantil; muitas as escoriações e os calos nos dedos mindinhos. Mas por artes mágicas conseguimos sobreviver a estas tormentas e chegou o momento de nos fazermos à estrada, passando em Porto, Leiria e Lisboa. A invicta foi a primeira cidade, o Teatro Bruto os primeiros a nos receber. Acompanharam todo o processo de montagem, adaptação e ensaios, ajudaram na produção, e ainda cozinharam para nós. Fizemos 5 actuações: para a casa do norte dos Açores, para um grupo de estudantes, para amigos, família e totais desconhecidos. A plateia andou cheia (cenas inacreditáveis de pancadaria, tudo à procura dos últimos bilhetes) e as reacções foram positivas tanto dos mais novos como dos mais graúdos. Saímos do Porto contentes com a nossa prestação e fomos em direcção ao Sul, até Leiria, onde a Imundacao foi integrada no festival de teatro - acaso. Por acaso, ou porque a sorte protege os sortudos, o grupo de teatro o nariz, recebeu-nos com um maravilhoso almoço no seu novo espaço de trabalho. É de louvar a persistência deste grupo Capa que entre outros contratempos, foi “convidado” a procurar uma nova casa o ano passado, depois de 15 anos de dedicação/ manutenção/ dinamização do antigo espaço... Como o palco era diferente, exigiu uma nova adaptação, tanto das luzes como de cenário e da própria movimentação em palco. Há que entranhar primeiro e estranhar depois. Em Lisboa o tempo de montagem também foi curto mas, com a simpatia da equipa chapitoniana e a dedicação da nossa sonoplasta e produtor, a coisa correu sobre rodas. Tivemos a tenda do teatro a arrebentar pelas costuras (muitos foram os amigos e familiares subornados) e, talvez por ser a última actuação, tínhamos os nervos à flor da pele. Na verdade, o nó no estômago nunca nos abandonou, desde o Porto até à capital. Para mim, o único senão desta aventura do Teatro de Giz pelo Portugal continental: criar úlceras no estômago e a azia crónica. Fora esses pequenos pormenores, valeu muito a pena imundar toda aquela gente de fantasia, sarcasmo, cor, música e humor negro. Que seja a segunda de muitas digressões continentais!

Lia Goulart


Colaboradores:
Capa: Tomás Melo a partir de Slides de Tereza Arriaga e Jorge Oliveira
Cinema: Cineclube da Horta
Agenda: Laura Marques
Literatura: Aida Baptista, Catarina Azevedo
Música: Victor Rui Dores
Intervenção: Cristina Lourido, Inês Cunha
Ciência e Ambiente: Berta Solé e Nuno Rodrigues



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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Edição nº66




Crónica
Domingo de Manhã

Domingo de manhã. Por um segundo a escuridão é interrompida pela luz dos números digitais do relógio despertador accionada pelo comando remoto. 07:03 AM. Daniel estava acordado há horas e já não aguentava mais estar na cama sem dormir. Cuidadosamente levantou-se, tentando não incomodar o corpo que dormia a seu lado. Após um duche rápido e [depois] de se ter arranjado dirigiu-se à cozinha para comer qualquer coisa. Ao entrar na sala foi banhado pelos primeiros raios de sol que entravam através da parede totalmente envidraçada. A visão da montanha do Pico entre o Monte da Guia e o Monte Queimado, sob a luz da aurora, melhorou a sua disposição não tendo sido, no entanto, suficiente para acabar com a neura de tantas noites mal dormidas. Preparou um chá verde com limão e, enquanto esperava que este ficasse a uma temperatura razoável para os seus lábios, ia trincando uns biscoitos e folheava a agenda cultural da cidade à procura de alguma coisa para fazer durante o dia. Do seu apartamento do 25º andar num dos inúmeros arranha-céus de vidro e aço da rua do Castelo conseguia ver a metrópole que se estendia por todas as encostas, com excepção dos montes de Porto Pim, bem como a ponte de ligação rodoferroviária à ilha do Pico e os vários ferrys que, apesar da hora matutina de fim de semana, já cruzavam o canal a um ritmo alucinante. Daniel observava a cidade enquanto a sua cabeça vagueava por outras paragens. O barulho de água na casa de banho chamou a sua atenção e ficou a olhar para a entrada da sala à espera que um vulto feminino surgisse. 
- Já te levantaste? 
- Fui só à casa de banho mas estava a pensar voltar para a cama, se não te importares que não te faça companhia hoje. 
- Claro que não. Sei que foi uma semana cansativa para ti, por isso mereces preguiçar o dia todo. 
- E o que é que pensas fazer hoje? 
- Para já estava a pensar se havia de tomar o pequeno almoço fora. 
- Parece-me um bom plano. Já decidiste onde? 
- Pois, esse é que é o problema. Não me lembro de nenhum sítio a que me apeteça ir. 
- Daniel, existem pelo menos 500 cafés neste lado da ilha, não me digas que não há nenhum que te encha as medidas. 
- Para ser sincero, não. (risos). Eu sei que parece estranho mas apetecia-me ir a um sítio calmo, com pouca gente. Apetecia-me ver um pouco de verde. 
- Porque é que não vais até ao Roosevelt Park? 
- Está vento. Não me apetece andar ao vento. 
- (Risos). Sabes perfeitamente que naquele vale não corre uma aragem. Tu adoras aquele parque, o que é que te está a incomodar tanto? 
- É domingo de manhã e vai estar um belo dia de Verão. Daqui a uma ou duas horas vai estar cheio de gente. 


 (continuação:) 


- Pois. Mas se o que procuras é paz e sossego é melhor ficares aqui comigo, porque não vais encontrar sítio mais calmo nestas ilhas. 
- (Risos). Parece-me tentador, mas já não aguento mais estar na cama. 
- Eu sei. 
- Que é que achas de irmos viver para uma ilha deserta no meio do Pacífico? 
- Parece-me óptimo, excepto um pequeno pormenor. Assim pequenino. 
- Sim? - Creio que não deve haver muito trabalho para uma tradutora e um livreiro numa ilha deserta... 
- Achas que não? (Risos). 
- Além disso não creio que fosses capaz de viver longe disto, da livraria dos teus pais, dos museus, dos teatros ou dos espectáculos de dança contemporânea. 
- Se forem todos tão bons como o de ontem à noite não lhes vou sentir grande falta. 
- Que mauzinho. É verdade que não foi das melhores coisas que cá passaram, mas há-de haver muito melhor, e tu sabes disso. 
- Sim, sei disso... Hoje é a inauguração da retrospectiva de Picasso na Casa das Artes. Quando é que queres ir ver? 
- Hum, deixa passar umas semanas, esperamos que deixe de ser novidade e, quando tiver menos gente, vamos com alguma calma. 
- Ok. 
- Daniel? 
- Sim? 
- Para o mês que vem temos de ir a Londres ver os meus pais. Que dizes de tirarmos mais uns dias e irmos até à Escócia fazer umas caminhadas junto aos lagos? 
- Parece-me uma excelente ideia. Pena que não seja já hoje. Daniel recebe um beijo reconfortante e deseja bons sonhos enquanto a vê voltar para o quarto. 
- Alice? 
- Diz. 
- Já alguma vez imaginaste como seria a Horta se não se tivesse tornado sede das Nações Unidas? 
- Nunca pensei nisso mas posso dizer que provavelmente os teus pais nunca se teriam conhecido e, em último caso, tu não existirias. Não consigo imaginar cenário mais horrível. (Sorriso). 
- Obrigado por palavras tão simpáticas, mas a sério. Já imaginaste como seria, sem tudo isto? Achas que haveria alguma livraria, ou museus e teatros, ou seria uma cidade pacata envolta em paisagens intocadas? Será que ainda haveria golfinhos ou baleias nestas águas, e outras aves para além das gaivotas e pardais? - É possível, não sei. Mas acho que já encontraste com que te entreter, caso não encontres nada melhor para fazer hoje. - Quem sabe?... Bons sonhos.

Miguel Valente


Colaboradores:
Capa: Vitor Azevedo

Música: Luís C. F. Henriques e Victor Rui Dores
Literatura: António da Vargem PerdigãoIntervenção: Lara Topa Mendes, Sílvia Lino, Margarida Fernandes
Teatro e Cinema: Victor Rui Dores e Gonçalo Tocha
Diferenças: Mano


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