sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Edição nº 52


Crónica

Lisboa-Horta ou a razão de 2011
É Janeiro, início de um novo ano, as pessoas fazem desejos, têm esperança, prometem coisas, arriscam previsões, afiançam recomeços, elaboram metas, adormecem sobre as promessas de um 2011 melhor que o ano precedente. O que seria de nós se fossemos obrigados a ver o tempo como algo linear, se não tivéssemos esta sensação de novidade, o impulso de conferir sentido renovado aos dias do calendário que agora se inicia, esse desejo de ter coisas que possam recomeçar a cada instante? E como nós gostamos de ver surgir no tempo cronológico oportunidades novas, querenças e desafios em catadupa, por isso encaramos o nascimento de um ano como se de um outro ciclo se tratasse…

Avião de Lisboa para o mundo escrevia também o Alexandre O´Neill e nós aqui sentados numa cadeira de avião que nos transportará para um mundo salino e verdejante. Ainda que novamente sem conseguir escrever absolutamente o que quer que seja, isto é, quase nada. Não se importa de tirar tudo, repetia o segurança do aeroporto, não fosse transportar poemas em forma de explosivos para o arquipélago mais ocidental. Apetecia tanto dizer que há tanta poesia nas livrarias e nas bibliotecas que construiríamos uma ponte atlântica entre o continente e as ilhas e não seria necessário voar, por isso dá tanta vontade de engolir os livros, os cadernos e os poemas e guardá-los na memória para depois repeti-los a toda a hora a quem quisesse. Ou então permanecer em silêncio profundo, durante dias a fio sem nada para dizer, em retiro absoluto. À espera que o nevoeiro passe até que a palavra crise, agora vomitada e repetida até à náusea se cale em cada boca, em cada olhar, pois mesmo assim vamos desconhecendo, felizmente, o que escreveria Virgínia Woolf, a 5 de Janeiro de 1918: “Está tudo racionado, agora. A maioria dos talhos está fechada; o único talho que estava aberto foi cercado. Não se pode comprar chocolates, nem caramelos; as flores estão tão caras que tenho de apanhar folhas para as substituir. Temos senhas para a maioria. As únicas montras onde há abundância são as lojas de fanqueiros. Outras lojas exibem latas ou caixas de papelão, vazias sem dúvida. (…) Subitamente já se dá pela guerra em todo o lado. Suponho que deve haver ainda algumas ilhas de luxo, intactas, algures – talvez nas casas das quintas da Northumbria ou da Cornualha; mas a mesa das pessoas comuns está bem vazia. Os jornais, no entanto, florescem, e por seis dinheiros ficamos fornecidos de papel que chega para acender o lume durante uma semana.” E, finalmente, o avião a levantar… E, por vezes, lá vem o ensejo de ficar por aqui a ver o jogo e também jogar, pois quem não joga não ganha nem perde e há muito que sabemos que anda por aqui muita coisa errada. Apetecia-me por isso reencontrar a poesia à volta de Lisboa do Alexandre O´Neill e permanecer somente a olhar, a tentar ver se revejo aquele gesto ou então avião de Lisboa para o mundo, agora que eu sei que toda ou qualquer esperança já foi a enterrar. Resta-me apenas os dias claros de Agosto, a descoberta das árvores no Botânico pela manhã, o sossego estival do jardim do Príncipe Real, as ruas e ruelas de Alfama, enquanto for possível meditar ou esquecer tudo o que a memória – essa maldita – teima em querer guardar. E se ao menos houvesse duas nuvens de razão tocadas…

Fernando Nunes

Colaboradores:


Capa: "Cachalotes dos Açores" de Les Gallagher
Ciência: José Bettencourt
Arquitectura e Artes Plásticas: Ana Correia
Literatura: Eduardo Bettencourt Pinto
Gatafunhos: Tomás Silva

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1 comentário:

Anónimo disse...

Belo texto Fernando, bravo. O universo paralelo da realidade espelha-se nas ruas de Lisboa, onde por mais que se olhe não se vislumbra traço dessa crise.

E por isso sabe bem voltar. Se possível envergando uma 'canottiera'.