sexta-feira, 26 de junho de 2009

Edição nº20


Crónica das oito teorias ou um ensaio do novo tipo, pois eu não tenho a paranóia dos romances


Quando eu era puto, tinha a mania de me ocupar em tentar consertar o mundo. O meu mundo. A ilha. O espaço em que me movia. Remendava aqui e ali, tirava dacolá, acrescentava algo de novo a certas coisas, que a meu ver eram importantes. Conversava muito. Conversava com os mais velhos, com uns e com outros, sobre tudo e sobre nada, mas a dada altura cheguei à brilhante conclusão, que esta coisa de mudar o mundo, é cá uma trabalheira, um projecto com dimensões e contornos brutais, e cansei-me. Cansei-me logo nos primeiros meses do ano em que completava os 15 anos. Olhei então à minha volta, e pensei na séria hipótese de escrever um Livro de Teorias. Isso mesmo. Teorias. Teorias das mais variadas e para as mais diversas necessidades pois uma pessoa não sabe o dia de amanhã. Porquê? Não sei. Nem penso muito nisso. Apenas penso nas teorias, e em ver o meu rico livrinho publicado. Sempre poderei ganhar alguns trocos, pois há sempre pessoas que vão em cantigas, mesmo em sol baixinho.
Pois bem. Comecei com brevíssimos apontamentos. Rabiscos em guardanapos, toalhas de mesa, nos maços de tabaco e no verso dos talões das compras. Outro dia, falei deste Livro de Teorias, a um amigo de longa data. Este, deveras curioso, pretendeu obter alguma informação detalhada sobre a hipotética publicação. Fez-me perguntas. Muitas perguntas e difíceis – para variar – e não hesitei por citar alguns exemplos dessas minhas teorias já anotadas. Vejamos:
Exemplo 1: Tenho como teoria o seguinte: quanto menos um adepto de um clube desportivo entende de futebol, mais alto fala. Outro dia, num café, mesmo perto da casa onde pernoito, e onde vou regularmente satisfazer o meu vício de fumador de tabaco, dois tipos falando de um certo e determinado encontro futebolístico, e aos berros, não davam uma para a caixa. Diziam um chorrilho de disparates. Cada um pior que o outro. Cada cova, cada minhoca, cada cavadela, cada cagadela. É pá, eram seguidas - contou-me alguém entendido nessa nobre arte de discutir futebol. A partir de então, esse tal meu amigo, começou por concordar com esta minha teoria, o que me deixou deveras entusiasmado. Se vontade tinha para avançar com o Livro das Teorias, com mais vontade fiquei.
Tenho outra teoria: Um sujeito quando compra um carro novo, espaçoso, com ar condicionado, airbag, jantes especiais, alta cilindrada, etc. menos tolerante ele é, com tudo e com todos.
Qualquer um pode fazer o teste. É só passear pela marginal da Horta. Outro dia, um senhor já com uma certa idade, conduzia um carro, daqueles que não sei como passam na inspecção, um tanto ao quanto em mau estado, pneus carecas, escape preso por um arame e retrovisor rachado pelas desgraças do tempo e da vida. Quando me preparava para atravessar a estrada, ele começa a parar bem ao longe e fez-me sinal para passar. Melhor ainda. Até esboçou um simpático sorriso. Lindo! Não adianta ter pressa, o melhor mesmo é sair à hora certa, que isto de andar com pressa é um stress do caraças.
Dias depois, avisto um “alto carro”, todo xpto, com ar condicionado, auto rádio, mp3, leitor de cd, dvd, telefone, televisão, micro-ondas, frigobar, churrasqueira, wc, jacuzzi, piscina e sei lá que mais… Quando começo a atravessar a passadeira, o espalhafatoso condutor - qual figurinha de filme de Emir Kusturika - prego a fundo, acciona a puta da buzina, o que me leva a tomar as devidas precauções. Deixei-o passar, antes que fosse completamente cilindrado. Pior que isso: O tipo estava cá com um mau humor, (mau humor sistemático) por algum motivo que nem Freud encontraria explicação para tanto azedume.
Outra teoria: Quando um sujeito inicia um processo de mestrado, descobre que é um autêntico burro.
Aconteceu e acontece a vários amigos meus. Um tipo é um bom profissional, dá conta do recado, lê os seus livrinhos, vai ao cinema, tem uma certa base crítica, não é nenhuma sumidade intelectual, mas resolve fazer um mestrado. Na primeira semana, descobre que as pessoas andam a dizer coisas muito mais interessantes… Enfim, começa mesmo a perceber que é meio burrinho, mesmo. A sorte é que no segundo semestre, lê que nem um camelo, começa a dizer coisas importantes, e não se acha mais tão quadrado assim.
Teoria número quatro: Um crítico de cinema vê o filme que vimos, mas é um outro filme.
Tirando o João Lopes, da SIC, que gosto muito, o crítico de cinema parece que vê sempre outra coisa. Quando a gente vê um drama humano, algo para repensar a vida, o crítico acha que o cinema está também em crise, e “não acerta o paradigma de uma estética existencialista". Quando o filme é aquela seca do início ao fim, e saímos do cinema com uma forte dor de cabeça, querendo tomar umas bejecas ou um whiskie para relaxar, o crítico entende que “a estética inovadora deu um novo impulso à narrativa, optando pela pluralidade”. Dá vontade apenas de dizer: é ruim, heim? Olhe, vá à merda…
Outra teoria: Cachorro é a cara do dono.
Podem olhar. Vem um fulano gordinho, o cachorro é gordinho. Vem um tipo magrinho, o cão é magrinho. Vem outro gajo que não se cala, o cão não para de ladrar. Vemos um cão que encontra outro cão e lhe vai ao rabo, o dono é gay. Vem uma tia empiriquitada, o seu caniche parece uma boutique ambulante a tresandar a perfuma de velha. Vem um labrego, ao seu lado, estará com certeza, um cãozinho de orelhas cortadas, rabo traçado e com uma coleira com o emblema do Benfica.
Teoria seis: Há gente que só vai ao cinema comer pipocas, e ainda por cima com a boca aberta.
Eu decididamente não entendo. Não percebo e se calhar nunca vou perceber. Já assisti a vários filmes, nunca vou ali, comprar umas pipocazinhas. Nem quando vou ver um blockbuster. Nenhum amigo, que assiste a um filme comigo, tem fome de pipocas. Isso mesmo. Fome de Pipocas. Mas quando vou a um centro comercial, chego à sala de cinema, sento-me, e lá vem um filho da puta de um estafermo, com a namorada, e um balde de pipocas. Não, não é um balde, mas uma saca, de 12 quilos. O gajo vem, e senta-se mesmo ao lado. O filme começa. Ele começa a jogar as pipocas na boca e amassa, com a boca aberta. Srec, srec, srec. O sacana, não vai ao cinema para ver um bom filme, mas para saciar uma tara íntima de comer pipocas no escuro, com o raio da boca aberta, coisa proibida em casa, provavelmente. Eu detesto esta teoria, mas que é verdade, lá isso é. Nunca vos aconteceu?
Outra teoria: No casamento, o padre só fala em traição.
Já não sei bem qual é a formação actual dos padres portugueses católicos, mas eu, que já frequentei uma igreja, onde eram realizados muitos casamentos, posso dizer – o padre tem uma complexa e punitiva tara pelo tema da traição – na cerimónia de casamento, os padres tem a mania que nós não paramos de nos comer uns aos outros. Pode ser verdade, mas ele precisa dizer isso, justamente na hora em que pergunta se um tipo vai ser fiel, na doença e na pobreza, na tristeza e na angústia? Se isto não é patológico, então o que é?
Teoria oito e conspirativa: O Humor afinal tem ideologia, e um dia que uma boneca insuflável deixe de ter prazer, é porque lhe faltou o ar.
Do jeito em que as coisas vão, um dia destes ainda emigro para a República de Camarões, e farei uma tenaz campanha pelas Lagostas. Sim, pelas lagostas. Que sejam elas as eleitas, caprichadamente cozinhadas em água salgada e bem quentinha, para que possam assim, ganhar cor, dando assim início a uma radical e prazeirenta metamorfose gastronómica, para serem degustadas junto ao mar, em noites de lua cheia, e comidas ao som de Vangelis, em perfeita simbiose com certas espécies de moluscos, caminhando na direcção do gosto dos mais exigentes adeptos de sumptuosas orgias mariscais. Sim, porque há quem pense que um bacalhau vem directamente do mar da Noruega em forma de triângulo.
Tenho mais 45 teorias, já devidamente anotadas e comentadas, encontrando-se já plasmadas num caderninho, já um tanto ou quanto manchado, de um vinho discreto, proveniente de uvas de castas tintas tradicionais do Douro – Tinta Roriz, Touriga Franca e Tinta Barroca. Ficam para depois…
Agora, vou mas é ler um conto de La Fontaine.

Moral da (desta) Crónica: A crónica é uma verdadeira inconstância. Em teoria, sabemos o que poderá ser, o que não pode ser, e o que poderia vir a ser realmente.

Luís Pereira


Colaboradores:

Ilustração: Pedro Solá
Crónica: Luís Pereira
Chegadas: Aurora Ribeiro
Gatafunhos: Tomás Silva
Cinema: Fausto André
Arquitectura e Artes Plásticas: Ana Correia e Pedro Solá
Literatura: Ilídia Quadrado
Ciência e Ambiente: Cristina Carvalhinho, Dina Dowling e Filipe Moura Porteiro
Lacunas: Fernando Menezes


Clique aqui para obter a versão completa do Jornal: Edição nº20

Ou clique em baixo para ler Online:




Sem comentários: